Religiosidade no trabalho, um teste para a diversidade

Por Rafael Sigollo | De São Paulo

Diversidade na força de trabalho e flexibilidade no horário são dois temas que ganharam força na estratégia de grande parte das empresas no Brasil e no mundo. Nos últimos anos, os departamentos de recursos humanos passaram a fazer estudos sobre as diferenças de gêneros, idades e raças em seus quadros. Além disso, implementaram ferramentas para mensurar a produtividade de um funcionário independentemente do número de horas que ele passa dentro da companhia. Tudo com o objetivo de tentar oferecer um melhor equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Um bom teste para comprovar se toda a teoria e o discurso a respeito dessas políticas em uma organização estão realmente alinhados com a prática são os casos envolvendo a liberdade religiosa no mundo corporativo.

De acordo com os dados mais recentes sobre o tema levantados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Brasil tinha, em 2000, 1.209.842 adeptos da religião adventista do sétimo dia, 86.825 do judaísmo e 27.239 do islamismo. Em todas elas, seus seguidores têm obrigações religiosas rígidas que podem exigir, por exemplo, algumas horas de reza em plena tarde de sexta-feira ou o total recolhimento aos sábados.

No caso do economista Guilherme Suedekum, de 25 anos, o expediente da semana é encerrado, impreterivelmente, até o pôr-do-sol da sexta-feira. Cristão adventista do sétimo dia, ele trabalha como analista de pesquisa na Endeavor e se organiza para cumprir as tarefas da semana até esse horário – geralmente os colegas vão até mais tarde. “Tento me programar e não deixar acumular nada para esse dia, pois nenhuma atividade extra me tira do meu contato com Deus”, afirma.

Suedekum garante que nunca teve problemas em razão de sua crença religiosa e conta, inclusive, com a compreensão de seus superiores e de seus pares. “Desde quando procurava estágio, sempre falei sobre as minhas condições nas entrevistas de emprego para evitar problemas no futuro”, explica.

A advogada e doutora em direito do trabalho Sônia Mascaro, sócia da Amauri Mascaro Nascimento Advogados, ressalta que nenhuma empresa pode deixar de contratar uma pessoa por sua religião em si, pois essa seria uma conduta discriminatória. No entanto, um candidato pode ser dispensado quando não apresenta os requisitos para preencher a vaga. “Se a descrição do cargo envolve trabalho aos sábados e o profissional, independentemente do motivo, não tem essa disponibilidade, ele vai ser recusado. O mesmo vale para os concursos públicos, em que as regras são especificadas nos editais e é preciso estar de acordo com elas para concorrer.”

Sônia Mascaro afirma que qualquer combinação especial deve ser tratada ainda no momento da admissão e registrada no contrato de trabalho. Isso também serve para evitar acusações de favorecimento por parte de outros funcionários. A psicóloga Mariana Taliba Chalfon, especialista em diversidade cultural e religiosa, concorda que o fato de um colaborador sair duas horas antes do fim do expediente, por exemplo, pode gerar tensão no resto da equipe. “Nessa situação, a transparência e a comunicação eficiente do gestor são fundamentais”, diz.

Por saber que não está tão disponível para a empresa tanto quanto os outros funcionários, porém, Suedekum revela que não se sente privilegiado, mas até mais pressionado. “Existe uma cobrança maior, até mesmo de minha parte, para que o trabalho seja sempre muito bem-feito.”

O advogado Osmen Chaaban Tinani, de 27 anos, também precisa adaptar sua rotina profissional em decorrência das obrigações religiosas. Muçulmano, ele já adiou reuniões e audiências agendadas às sextas-feiras para poder estar ao meio-dia na mesquita, onde reza até às 14h.

Tinani confessa que já sofreu preconceito e chegou a perder o emprego em razão de compromissos dessa natureza. No entanto, ele afirma que a comunidade islâmica no país é forte e que ser muçulmano pode abrir muitas portas. “Talvez possa me prejudicar no âmbito internacional. Mesmo sendo brasileiro, tenho dificuldade em ingressar em países como Estados Unidos, Inglaterra, Espanha e Canadá devido meu nome e sobrenome”, diz.

Na opinião do professor Marco Tulio Zanini, coordenador do mestrado executivo da Fundação Getulio Vargas no Rio e consultor da Symballein, as empresas já estão mais dispostas a fazer concessões para acomodar diferentes perfis profissionais. “Desde que não represente um grande prejuízo ou conflito no andamento da organização, é perfeitamente possível negociar essa flexibilidade e respeitar as necessidades de cada indivíduo”, diz.

Com o aumento da internacionalização das companhias e da complexidade dos negócios como consequência de uma economia mais global, é possível tirar vantagem dessa diversidade no ambiente de trabalho. Uma equipe que traz visões diferentes de mundo e que consegue trabalhar em harmonia, afinal, se torna mais madura e apta a enfrentar desafios e buscar inovação. “Um time diverso é formado por pessoas que pensam de forma diferente, mas têm objetivos comuns. Devemos sempre buscar unidade e não uniformidade”, afirma Zanini.

Mariana alerta que a religião pode impor regras de conduta, como restrições de vestuário e alimentação. Desse modo, além das crenças de determinado colaborador, os colegas precisam compreender o fato de, porventura, ele não sair para almoçar com o grupo ou se vestir de maneira peculiar. Ao mesmo tempo, espera-se uma contrapartida. “O ambiente de trabalho não é lugar para pregações religiosas ou orações públicas. A chave para um bom relacionamento é o respeito mútuo”, diz.

Suedekum afirma que existe uma curiosidade natural por parte dos colegas a respeito de suas crenças, o que abre espaço para esclarecimentos e conversas produtivas. Tinani conta que sempre foi bem aceito no ambiente corporativo. “Alguns se interessam pelo assunto e existem até brincadeiras como ‘homem-bomba’ e ‘terrorista’ que são assimiladas por mim.”

Divergências religiosas, na opinião de Mariana, não são um problema grave no Brasil. A postura da pessoa em relação aos hábitos religiosos, contudo, pode trazer algumas dificuldades. Segundo ela, quanto mais ortodoxo é o fiel, geralmente mais difícil é a sua inserção em ambientes que apresentam valores diferentes dos seus. “Quando há a tentativa de impor sua crença ao outro criticando o colega que ingere carne de porco, por exemplo, ou dizendo que é preciso fazer uma limpeza espiritual no departamento defumando a sala, os problemas de intolerância começam a aparecer”, ressalta.

Conversão de funcionário pode gerar conflito jurídico

A grande divergência legal hoje em torno da religião no ambiente de trabalho se concentra nos funcionários convertidos após a contratação. O conflito acontece, por exemplo, quando uma pessoa que foi recrutada para trabalhar de segunda a sábado de repente precisa se resguardar nos fins de semana por razões que antes não existiam.

“É uma situação nova para o empregador, pois essa condição não foi combinada previamente”, explica a advogada e doutora em direito do trabalho Sônia Mascaro, sócia da Amauri Mascaro Nascimento.

Ela afirma que, em caso de dispensa, pós-conversão religiosa, o funcionário muitas vezes alega que foi discriminado. Cabe à empresa, desse modo, demonstrar que não se trata de preconceito, mas da perda da capacidade desse profissional de exercer plenamente suas funções.

Mesmo assim, segundo ela, não existe um direcionamento seguro em processos desse tipo – que estão se tornando cada vez mais comuns nas empresas. Alguns juízes decidem a favor do empregado, levando em conta a liberdade religiosa garantida na Constituição Federal. Outros, dão razão às empresas, concluindo que o funcionário deve seguir o que foi acordado no contrato de trabalho.

Se a empresa achar que a conversão religiosa de um funcionário está resultando em prejuízo ou queda de produtividade, a recomendação da advogada Sônia Mascaro é que a demissão seja concretizada, mas sem a alegação de justa causa. “Caso contrário, a organização corre um grande risco de ter que se defender no tribunal”, alerta. (RS)

Fonte: Valor Econômico